- Ficha Técnica
. Roteiro: Ricardo Barreiro
. Arte: Eduardo Risso
. País de origem: Argentina
. Gênero: Fantástico urbano / Terror / Realismo mágico
- Resenha
Parque Chas é uma obra que emerge no cenário dos quadrinhos latino-americanos como um exemplo raro de fusão madura entre realismo mágico, terror urbano e reflexão social, usando a linguagem gráfica para elaborar um comentário sobre a vida nas grandes cidades, seus fantasmas concretos e simbólicos. Publicado originalmente entre o fim dos anos 1980 e início dos 1990, o quadrinho propõe uma abordagem que dialoga diretamente com tradições literárias como Borges, Cortázar e o fantástico rioplatense, mas traduzidas para uma estética popular e iconográfica da HQ.
O bairro Parque Chas, em Buenos Aires, é o foco principal da narrativa. Embora seja um lugar real, é retratado de forma fictícia como um non-lieu, um bairro que se contorce sobre si mesmo, um labirinto — tanto físico quanto metafísico. O local atua como uma plataforma para tornar o impossível possível: vampiros, sereias, fantasmas, personagens históricos reencarnados, seres extraterrestres e fenômenos que desafiam a lógica.
A força literária de Parque Chas está na maneira como Barreiro apresenta o fantástico não como uma exceção, mas como uma norma. O insólito aparece de forma natural, sendo aceito pelos personagens sem a necessidade de explicações, assim como nos contos clássicos do realismo mágico. A forma casual como um fantasma ou uma sereia aparece destaca uma poética do cotidiano distorcido — a cidade vista como um organismo vivo, caótico, indiferente e, por fim, cruel.
A estrutura do quadrinho é episódica, criando uma galeria de histórias que se passam dentro do mesmo espaço, mas apresentam protagonistas distintos. Como em um romance em mosaico, cada episódio revela um fragmento de um mundo maior. Não há uma trama única — há um bairro que devora, que testemunha e que acumula histórias como sedimentos urbanos. Esta fragmentação aproxima a obra também da crônica urbana e do conto fantástico argentino.
Essa abordagem fragmentada possibilita a utilização de diversos tons — como terror, ironia, humor negro e crítica social — e resulta em uma leitura não linear; o bairro é o protagonista, enquanto os personagens humanos são elementos transitórios de sua mitologia.
A cidade como representação
São poucos os quadrinhos que retratam a cidade como uma personagem tão importante. Parque Chas é um:
1. Um labirinto tangível, com ruas circulares e desordenadas;
2. Um lugar onde a lógica se desfaz;
3. Uma metáfora do urbanismo desumanizado na América Latina;
4. Um espelho das tensões políticas e psicológicas da era moderna.
O bairro se apresenta como uma máquina narrativa, capaz de alterar o destino dos personagens e mostrar que o monstruoso pode estar presente no dia a dia. Em vez de se afastar do urbano, a história em quadrinhos o reconstrói como um espaço poético de instabilidade.
Barreiro exibe um extenso conhecimento das referências culturais do Cone Sul:
1. A metáfora borgiana do labirinto;
2. A vida cotidiana distorcida de Cortázar;
3. O humor gráfico argentino é caracterizado por um humor ácido;
4. A incorporação de mitos literários, históricos e populares no carnaval.
Dentro da lógica dos quadrinhos, tudo isso é reapropriado, o que permite que o fantástico seja tanto narrativo quanto visual, além de intertextual.
A arte de Eduardo Risso
Antes de 100 Balas, Risso já exibia sua marcante assinatura gráfica: sombras intensas, composições cinematográficas, uso dramático do preto e branco, e personagens estilizados, porém expressivos. A atmosfera angustiante criada por seu desenho é palpável — o leitor experimenta a opressão das ruas sinuosas, dos becos, dos subterrâneos e das noites sem fim.
Risso não apenas ilustra, mas também traduz visualmente a sensação da obra: uma constante agitação, um humor melancólico, urbano, irônico e latino. Sua arte não apenas segue a narrativa, mas a intensifica.
Apesar do elemento sobrenatural, o verdadeiro horror de Parque Chas é humano, solidão urbana, fracasso social, precariedade da vida nas metrópoles, memória histórica que não passa, violência como traço estrutural da realidade. A presença do fantástico revela — não esconde — os conflitos da vida moderna. O monstro, muitas vezes, não é o estranho, mas o habitual.
O resultado é uma HQ que transcende a aventura para alcançar densidade literária, emocional e simbólica. Não é apenas uma coletânea de histórias estranhas, mas um retrato poético e inquietante de um continente urbano marcado por memórias, tensões e fantasmas — reais ou imaginados.
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