O Evangelho Segundo Marcos

O Evangelho de Marcos é o segundo livro do Novo Testamento e um dos quatro evangelhos canônicos da Bíblia, juntamente com Mateus, Lucas e João.  É geralmente reconhecido como o evangelho mais antigo, tendo sido escrito provavelmente entre 65 e 70 d.C., pouco após a morte de Pedro e durante ou imediatamente após a destruição de Jerusalém pelos romanos (70 d.C.).

Desde a primeira linha — “Início do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1) — Marcos mergulha o leitor em ação.
Não há genealogia, nem infância de Jesus: a história começa no deserto, com João Batista e o batismo.

O estilo é urgente, quase cinematográfico. A palavra “imediatamente” (euthys, em grego) aparece mais de 40 vezes, dando ao texto um ritmo impetuoso, como se o Reino de Deus estivesse irrompendo no presente.

Esse dinamismo é também uma marca teológica: o Reino não é uma ideia abstrata, mas algo em movimento, que age e transforma. Marcos quer que o leitor sinta o impacto direto do encontro com Jesus.

- O segredo messiânico

Um dos aspectos mais fascinantes é o denominado "segredo messiânico": Jesus cura, realiza exorcismos, realiza milagres — e imediatamente instrui: "Não conte nada a ninguém."

Por que ocultar o messianismo?
Literariamente, esse dispositivo gera suspense e enigma.  Desde o versículo 1, o leitor já tem conhecimento de quem Jesus é, ao passo que os personagens ainda não o entendem completamente.  A identidade de Cristo é revelada de forma gradual e só é compreendida de fato à luz da cruz.

Assim, o segredo messiânico prepara o leitor para a reviravolta principal do evangelho: o Filho de Deus não vence por meio do poder, mas da entrega.

- Conflito e incompreensão

Marcos desenvolve uma história de conflito em ascensão.
Jesus confronta os demônios (representantes do mal espiritual), os fariseus (encarnação do legalismo) e, por último, a falta de fé de seus próprios discípulos.

Os discípulos são apresentados de forma severa: não compreendem as parábolas, sentem medo e abandonam Jesus no momento da crucificação. Essa vulnerabilidade humana é intencional: Marcos busca demonstrar que o autêntico discipulado não consiste em entender tudo, mas em seguir mesmo sem compreender.

Portanto, o evangelho é uma escola da fé — uma jornada da cegueira à visão.

- A cegueira e o ver

A simbologia da visão é fundamental.
Nos capítulos 8 e 10, Marcos estrutura sua narrativa em torno de três declarações da paixão, intercalando duas curas de cegos (8,22–26 e 10,46–52). Não se trata de coincidência, mas de uma técnica literária de moldura (inclusio).

Essas curas atuam como parábolas vivas.
O discípulo assemelha-se ao cego de Betsaida: percebe gradualmente, inicialmente de forma indistinta (“vejo pessoas, mas parecem árvores andando”), até que, ao ser tocado novamente, passa a enxergar com clareza. A fé é um processo — uma perspectiva que se refina à medida que se aproxima da cruz.

- A cruz como revelação

Tudo se encaminha para Jerusalém.
Na narrativa, o clímax não é a ressurreição (que Marcos conclui de forma abrupta em 16,8, com as mulheres fugindo do sepulcro), mas a crucificação.

Na cruz, o "mistério" finalmente se desvela:
“Vendo o modo como Jesus expirou, o centurião romano disse: Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus.” (Mc 15,39)

O primeiro a compreender a identidade de Jesus é um pagão, símbolo da abertura universal da fé. Assim, Marcos inverte todas as expectativas: a vitória divina se manifesta na fraqueza e a glória se revela na morte.

- O final aberto

O final original (16,8) termina de forma abrupta:
“Elas saíram e fugiram do túmulo, pois estavam com medo... e não disseram nada a ninguém.”

Literariamente, esse final é um convite ao leitor: o anúncio da ressurreição agora depende de quem lê.
É como se Marcos dissesse: “A história só continua se você acreditar.”

Esse encerramento incompleto faz do evangelho um texto vivo e interpelante — não um registro fechado do passado, mas uma provocação existencial.

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